Frase do dia, da semana...

Tanto para o menor como para o maior, há alguma coisa que só se pode realizar uma vez; e nesse feito o coração repousará (Fëanor, no Circulo de Julgamento, O Silmarillion)

quarta-feira, 31 de março de 2010

Fëanor


FËANOR MALIGNO?
Ensaio elaborado por Edhelcalen

A mitologia de Tolkien se desenvolve através de eventos intrincados e interligados. Embora possam se apresentar de forma independente, nitidamente sentimos que um evento enriquece e aprofunda o outro. Se olharmos cada um deles isoladamente não há o risco de falta de compreensão, mas esta se torna mais pobre e perdemos a oportunidade de mergulharmos numa imensidão “histórica”, cujas dimensões e profundidade sempre nos causarão surpresa.

É o caso de Fëanor, constantemente sob análises limitadas e superficiais, sem abranger a totalidade desse personagem. Amado ou odiado, mas nunca ignorado, seu nome faz nascer os mais acirrados debates e, às vezes, a paixão que o personagem desperta impele alguns leitores mais afoitos e desavisados a incorrerem num erro, se não numa injustiça: apor, ao nome de Fëanor, o adjetivo “maligno”.

Maligno??

Os erros de Fëanor foram muitos e isso acabou por corromper o que esse mais poderoso dos Eldar poderia ter sido. Ao se expressar sobre Fëanor seus mais ferrenhos acusadores ressaltam três pontos principais: seu juramento, o assassinato dos Teleri e o abandono de seu meio-irmão, Fingolfin, no gelo tormentoso de Helcaraxë. Alguns chegam ao extremo de diagnosticá-lo como sofredor de algum tipo de psicopatologia.
Talvez esses analistas e acusadores tenham a visão obliterada pela necessidade imaginativa de enxergar os Elfos como figuras angelicais, que ficariam tocando harpa no “Paraíso de Aman”. Figuras incapazes de terem emoções, desejos, paixões e ímpetos que maculariam sua aura de eterna benevolência.
Quando se deparam com um Elfo, cuja personalidade complexa foge daquilo que desejam desesperadamente que fosse, a reação é de surpresa. Chocados, precisam enfatizar a dicotomia bem-mal, como se fossem elementos que não devem coexistir num mesmo momento, num mesmo lugar, tampouco no mesmo indivíduo. Isso se revela claramente quando o assunto é Fingolfin ou Galadriel. O primeiro se tornou, sob os olhares dos revoltados com Fëanor, a própria vítima, preferindo fingir que ele nunca tenha tomado parte do massacre do Porto dos Cisnes, por exemplo. Por sua vez, é varrida para debaixo do tapete a personalidade altamente ambiciosa de Galadriel, dando preferência à sua imagem de Senhora de Lothlórien que acolhe a Comitiva e se recusa a pegar o Anel de Frodo. Facilmente é esquecido o fato de que Galadriel era acometida dos mesmos ímpetos de Fëanor e que tenha ficado desejando desesperadamente possuir o Um. É mais fácil vê-la como uma figura moldada pela sabedoria, incorrupta. A narrativa favorece isso na medida em que pouco é dito sobre a verdadeira (e completa) face de Galadriel. O mesmo não acontece com Fëanor. Tolkien joga a luz do holofote sobre Fëanor, de forma que todos os olhares se voltem em sua direção... e aí começa um julgamento feroz.
Fëanor torna-se a própria materialização do anjo Caído do Paraíso cristão. É aquele que deve ser odiado, repelido e condenado. Todos os seus feitos positivos são esquecidos e a chance de uma análise imparcial do personagem é negligenciada. Embora a simples menção do nome do primogênito de Finwë desperte fortes paixões, quaisquer que sejam elas, Fëanor tornou-se o símbolo extremado daquilo que nós, seres humanos, queremos negar que carregamos em nosso interior: a (temida) possibilidade de abrigarmos, na nossa alma, o bem e o mal lado a lado.
Assim jogamos a primeira pedra, numa tentativa vã de nos forçar a ser o espelho daqueles seres benevolentes e angelicais. É a negação da complexidade que somos e dizemos para nós mesmos: “Fëanor é mau, eu não!”. É a mesma arrogância, em diferente (?) grau, da qual Fëanor foi acometido. Ele foi incapaz de fazer uma auto-avaliação e perceber que era passível de erros, colocando-se num patamar acima dos outros. Esse foi seu erro, e que o impediu de reconhecer, nas entrelinhas, as verdadeiras motivações de Melkor. Em sua mente, ele estava acima de qualquer sugestão externa. Quem de nós pode afirmar que nunca foi acometido desse tipo de arrogância?
Fëanor tornou-se vítima do próprio poder que possuía. Um poder que nenhum dos Filhos de Ilúvatar pôde se igualar (talvez à exceção de Lúthien, mas esta carregava o sangue de uma maia). Tamanho era seu poder que todos os seus atos e criações moldaram, para sempre, o destino de Arda. Se assumirmos, em nossa imaginação, que estamos vivenciando a Sétima Era, vemos que “nossa” história atual é resultado da junção dos feitos de Melkor e dos feitos de Fëanor. Isso quase coloca Fëanor em pé de igualdade com o maior e mais poderoso dos Ainur. Isso por si só deveria exigir uma análise mais apurada desse personagem.
Fëanor, dando vazão ao seu próprio poder (subcriativo, inclusive) criou os silmarilli.
Conseguiu o feito que causou admiração por parte dos próprios Valar e atiçou a cobiça de Melkor. Aprisionando a luz das Árvores, ele garantiu que a humanidade pudesse olhar para o céu e ver o sinal daquilo que um dia existiu e retornará após a Batalha Final. Um outro ponto normalmente acusatório aqui: a recusa de Fëanor em entregar as jóias para sua destruição e conseqüente recuperação das Árvores destruídas. Mas lembremos que mesmo que as Árvores não tivessem sido conspurcadas por Ungoliant, elas somente jorrariam sua luz de bem-aventurança sobre uma minoria seleta, privando os demais seres de Arda do sinal de esperança. Se Fëanor não as tivesse criado, Eärendil não estaria navegando no céu, e a luz de Telperion e Claurelin seria apenas uma lenda repassada a cada geração até se perder no esquecimento.
Fëanor não entregou as jóias, e no momento em que Aman inteira pranteava a escuridão, ele foi tomado por uma dor muito maior do que a ausência da luz: a morte de Finwë. Essa dor é totalmente desprezada por aqueles que, numa visão reducionista, preferem apenas “ver” seus atos imediatamente posteriores.
Essa dor passa a ser algo insignificante. É dito em O Silmarillion: “Mas ele estava desvairado de dor pela morte de seu pai e de angústia pelo roubo dos silmarils”. Só a segunda parte é lembrada; a primeira é pisoteada e ignorada por aqueles que o acusam. Novamente, aqui é nítido a negação daquilo que não queremos ter ou sentir.
Pergunta: deveria Fëanor se sentar aos pés de Manwë (a exemplo do que os Vanyar sempre fizeram), prantear a morte de seu pai e ficar impassível diante da ação cruel do assassino?
Quem, na vida real, teria essa atitude?
A partir daí, Fëanor torna-se vítima de sua arrogância e de sua dor. Soma erros em cima de erros que resultam em sua própria morte e seu enclausuramento nos Salões de Mandos.
Fëanor tornou-se um alvo duplo: das artimanhas de Melkor/Morgoth e da ira dos Valar. O que teria acontecido se os Valar não tivessem dado vazão à sua própria ira? Com certeza não teria existido a interdição. Agora, qual é a justificativa para os Valar voltarem suas costas nos anos que se seguiram a todos os seres da Terra-média, principalmente os Noldor, muitos dos quais não eram nem nascidos em Aman? Pouco - ou de forma muito débil - os Valar são “julgados” por essa atitude.
Os Noldor sofreram; os Sindar sofreram; os Anões sofreram, os Homens sofreram. E quando olhamos para os Valar e perguntamos “por quê?”, é como se eles dissessem “é tudo culpa dele!”, apontando para Fëanor.
Se é dada a justificativa para que eles não declarassem guerra contra Melkor (no que 500 anos depois se tornou a Guerra da Ira) como sendo a preocupação com a destruição de Arda, então que revogassem a interdição e muitos não teriam caído nas teias da “maldição” (entre aspas) de Mandos. É possível imaginar quanto de sofrimento teria sido evitado.
Conforme O Silmarillion, Melkor não envenenou somente a mente de Fëanor (“E quando Melkor viu que tais mentiras eram um fogo latente e que o orgulho e a cólera estavam despertos entre os Noldor, falou-lhes a respeito de armas”. O Silmarillion, cap. Dos silmarils e do desassossego dos Noldor). É bem possível que tenha, também, despertado o desejo de Fingolfin pelo poder. O mesmo livro dá a entender que já havia uma cisão entre os Noldor antes da rebelião, colocando os seguidores de Fëanor e os de Fingolfin em lados, digamos, quase rivais e competitivos.
Quem mantém o equilíbrio é Finwë. Este é um dos motivos pelo qual não creio que quando Fingolfin foi falar com seu pai para conter Fëanor, o fez somente por lealdade ao rei, mas também para mostrar que estava a altura de liderar os Noldor.
Quando do debate entre Fëanor e Fingolfin sobre a volta para a Terra-média, será que somente a preocupação com os Noldor era o motivo para Fingolfin discordar de seu meio-irmão?
Fingolfin era orgulhoso. Todos os Noldor eram; ele não seria exceção. E isso me leva à outra questão. Com a morte de Finwë, se Fingolfin conseguisse convencer os Noldor a permanecer em Aman - e com Fëanor fora do caminho por ter partido no encalço de Melkor - ele seria o rei dos Noldor. Uma outra questão: o fato de Fëanor ter sido exilado em Formenos e Finwë, em sua tristeza, tê-lo acompanhado, deixou Fingolfin liderando os Noldor, mesmo que temporariamente. Como seria devolver isso a Fëanor? Parece-me improvável que Fingolfin quisesse desperdiçar uma oportunidade dessas.
Entretanto, no debate quem venceu foi Fëanor, e Fingolfin não teve outra opção a não ser aceitar a liderança de seu irmão. No que tange a esse assunto, quem estava certo era Finarfin que, de forma tão tranqüila, assumiu o reinado dos Noldor de Aman.
Nós temos conhecimento de que a nossa História está recheadíssima de fatos semelhantes e que o desejo de poder está presente nas disputas entre as famílias e herdeiros. Supor que a Casa de Finwë fosse uma exceção parece-me “exceção demais”.
Fingolfin parece não ter o ímpeto de seu irmão, tampouco o carisma e a eloqüência de Fëanor, mas isso não o coloca numa categoria de submissão ou de aceitação total e inquestionável digamos assim, que vemos no exemplo Boromir-Faramir. A rivalidade entre Fingolfin e Fëanor era uma realidade e não creio, por todos os motivos que citei anteriormente, que isso tenha partido unicamente da parte de Fëanor.
Muito possivelmente, Fëanor tinha isso muito claro e pode explicar sua decisão de partir e queimar os navios. Nada é dito que Fëanor tenha premeditado deixar os que seguiam Fingolfin - e o próprio Fingolfin - para trás: “... e muitos se arrependeram do caminho seguido e começaram a murmurar, sobretudo aqueles que seguiam Fingolfin, amaldiçoando Fëanor e considerando-o a causa de todas as desventuras dos Eldar” (O Silmarillion). Isso pode ter sacramentado sua desconfiança fazendo-o partir secretamente para a Terra-média.
Chegando a Terra-média, mostrou a que veio e sem se deixar distrair ou contemplar ambiciosamente as vastas terras de Beleriand, partiu ao ataque de seu inimigo. Ali morreu lutando, e seu corpo teve um destino compatível com seu espírito que ardia mais que em qualquer outro filho de Eru.
Em sua trajetória, brevemente descrita por Tolkien, Fëanor jamais se rendeu a Melkor, fato claramente dito nO Silmarillion onde afirma que ninguém jamais odiou Melkor como ele.
Fëanor maligno? Não, absolutamente. Fëanor foi tão somente vítima de seu próprio poder que atraiu para si a atenção do mais poderoso dos Ainur.
São poucas as páginas que relatam a história desse personagem, mas como ele, a brevidade do relato não deixa de mostrar sua importância, complexidade e profundidade.
São páginas suficientes para nos mostrar que quase a totalidade da história de Arda nasceu dos feitos e das mãos do mais poderoso dos Filhos de Ilúvatar: Fëanor.


Créditos da gravura: retirado do site www.wargamez.com.ar

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